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Doping não intencional no desporto [Alimentos e Suplementos Contaminados]

 Os testes obrigatórios de controlo anti-doping foram introduzidos em 1968 pelo Comité Olímpico Internacional (IOC) e desde então têm vindo a ser reportados casos de doping em competições desportivas de todo o mundo.1

Os resultados positivos baseiam-se na deteção de substâncias proibidas, seus metabolitos e marcadores em amostras biológicas (principalmente urina) fornecidas pelos atletas.1

Em vários casos em que foram detetados casos positivos, os atletas negaram o uso de doping para potenciar a performance e afirmaram ter absorvido a droga de forma inadvertida ou passiva.1

De facto, a literatura existente sugere que a ingestão de determinados alimentos e/ou suplementos alimentares poderá produzir resultados positivos em controlos de anti-doping.1-4

Alimentos

Carnes contaminadas com clembuterol

Desde os anos 40 que o sector agropecuário tem vindo a usar fármacos anabolizantes para promover o aumento de peso do gado. Em alguns países, tais como os EUA, o uso deste tipo de compostos estão restritos ao uso terapêutico e noutros países estes são totalmente proibidos, inclusive na União Europeia.5,6

Um desses compostos é o clembuterol, sendo que a carne proveniente de animais tratados com este composto poderá conter traços de clembuterol, que por sua vez poderá resultar em casos positivos em testes anti-doping.2,3

Em Portugal já foram relatados pelo menos 4 casos de contaminação por clembuterol, num total de 50 pessoas afetadas, devido à ingestão de carne de borrego, fígado e carne de bovino.7 Em 1990, em Espanha, 135 indivíduos sofreram contaminação com clembuterol após a ingestão de fígado bovino contaminado.8 Também já foram descritos casos em França e Itália.9

Em 2010 e 2011 ocorreram casos inexplicáveis de doping com clembuterol em grupos de atletas de ténis de mesa e de futebol, o que levou a uma série de investigações. Foi demonstrado que viajar para a China, México e permanecer nesses países associa-se a um elevado risco de doping inadvertido com clembuterol.2,3

Mais recentemente, no mundial de futebol de 2014, a FIFA alertou as seleções de futebol para o perigo da ingestão de carne contaminada com clembuterol, informando que haviam sido detetadas carnes contaminadas no México e em outros seis ou sete países da América do Sul.10 De notar que também poderão existir outros países de risco.11

Embora as fontes mais prováveis de contaminação sejam a carne e o fígado,1,12-14 o consumo de outros produtos animais, tais como o leite e vísceras, não pode ser excluído.11

Carnes contaminadas com esteroides anabolizantes

Apesar da regulamentação existente, também existe a possibilidade de uso ilegal de esteroides anabolizantes para promover o crescimento do gado e, devido a isso, a ingestão de carnes contaminadas poderá conduzir a testes positivos para esteroides anabolizantes.1

Num estudo realizado em 1994, um grupo de investigadores obteve resultados positivos em 50% das amostras de urina recolhidas 24 horas após a ingestão de carne de aves que receberam injeções intramusculares de um esteroide anabolizante (metenolona).5

Alimentos contaminados com micotoxinas

A ingestão não intencional da micotoxina zearalenona, produzida por numerosas espécies de fungos do tipo Fusarium15-17, poderá resultar na excreção urinária do metabolito zeranol, um composto anabólico proibido pela WADA.11,18

Os fungos Fusarium estão presentes em todos os continentes e são conhecidos por infestar trigo, cevada, arroz, milho e outras culturas, antes e após a colheita, resultando na contaminação de alimentos para seres humanos e rações para animais.19

Num estudo realizado na Europa, verificou-se que a micotoxina zearalenona estava presente em 32% de um total de 5018 amostras de cereais.20 Outros trabalhos revelaram a presença de níveis elevados de contaminação em culturas de cereais e outros alimentos, a nível global.21-24

Para além disso, a zearalenona é um composto que não se degrada durante o armazenamento, moagem, processamento e cozimento dos alimentos, tal como comprovado pela sua presença em alguns produtos derivados de cereais, tais como o pão, cerveja e outros alimentos processados.25-27

Em 2011 foi estabelecida uma estratégia viável para determinar se os casos positivos de zeranol provêm ou não da ingestão de zearalenona.18

Alimentos contendo cânhamo

A popularidade dos produtos alimentares que incluem cânhamo (Cannabis sativa) na sua composição tem vindo a aumentar em vários países. Esses alimentos incluem brownies, biscoitos, bolos, óleo, chá e cerveja de cânhamo.1,28

No seu estudo, Bosy e Cole verificaram que a ingestão diária de óleo de cânhamo resultou na presença de um pico de 5,2 µg/L de metabólitos de THC na urina, bem abaixo do valor de referência usado nos controlos anti-doping (15 µg/L).28 De acordo com os autores, é difícil atingir a quantidade diária desses quantidades, mesmo pelos consumidores mais ávidos de produtos derivados de sementes de cânhamo.28

No entanto, dois estudos reportaram que a ingestão de alimentos contendo marijuana pode produzir resultados positivos em testes de controlo que avaliem amostras de urina.29,30

Deste modo, pode-se assumir que a ingestão de alimentos confecionados com marijuana, tais como brownies e barras, poderá causar resultados positivos em controlos anti-doping.29,30

Sementes de papoila

As sementes de papoila (derivadas da Papaver somniferum) são frequentemente usadas na confeção de pão e bolos em todo o mundo.31

Vários estudos revelaram a presença de dois alcaloides principais do ópio: codeína e morfina, nessas sementes. O isolamento de opiáceos nas sementes de papoila conduziu à suspeita de que o seu consumo iria resultar em concentrações significativas em amostras de urina e, possivelmente, resultados positivos em controlos de doping.31

Meadway et al. verificaram que as concentrações máximas de morfina e codeína presentes em sementes de papoila (originárias da Austrália, Holanda e Turquia) eram de 33,2 e 13.7 µg/g de semente, respetivamente. Após a ingestão de um bolo de sementes de papoila contendo uma média de 4,69 g de sementes por fatia, a concentração máxima de morfina na urina foi de apenas 302 µg/L.31

Em 1990, elSohly et al reportaram concentrações urinárias que atingiram quase 1000 µg/L, em voluntários que ingeriram um, dois ou três bolos, cada um contendo 2g de sementes de papoila (108 µg de morfina/g de semente).32

No mesmo estudo, um indivíduo ingeriu bolo de semente de morfina contendo 15g de semente. As concentrações mais elevadas na urina foram de 2010 µg/L, 9 horas após a ingestão e a concentração diminuiu até <300 µg/L, 28 horas após a ingestão.32

Tendo em conta que o valor limite (concentração de urina) para a morfina na lista do IOC é 1000 μg/L, os resultados de elSohly et al sugerem que a ingestão de sementes de papoila poderá ser a causa de resultados positivos para a presença de morfina em testes antidoping.1,32

Chá de folha de coca

O consumo de chá de folha de coca é comum em alguns países da América do Sul, tais como o Peru e Bolívia.1

No seu estudo, Jackson e colegas verificaram que o consumo de uma chávena de chá de coca resultou em concentrações máximas de 1400 a 2800 µg/L de benzoilecgonina na urina, 4-11 horas após a ingestão do chá.33

Por sua vez, Jenkins et al. observaram que a ingestão de uma chávena de chá de coca boliviano, resultou em concentrações urinárias de 4979 µg/L de benzoilecgonina, 3,5 horas após o seu consumo.34

Estes dois estudos demostram que o consumo de chá de coca resulta em concentrações detetáveis de metabolitos de cocaína na urina, durante pelo menos 20 horas. Portanto, se um atleta consumir chá de coca algumas horas antes da competição, o seu teste de urina para controlo de doping irá, provavelmente, indicar um resultado positivo para a cocaína.1

Suplementos

Embora seja difícil quantificar a extensão do problema, estima-se que 6,4% a 8,8% dos casos de doping sejam causados pela ingestão de suplementos contaminados.35

Hormonas e pró-hormonas

Um estudo realizado em 2000 demonstrou que, de 634 suplementos alimentares não hormonais, provenientes de 13 países e de 215 fornecedores diferentes, 14,8% estavam contaminados com hormonas ou pró-hormonas.36

Também já foram registados casos de contaminação cruzada de suplementos de vitaminas e minerais com esteroides, devido ao uso da mesma linha de produção.37,38

Num estudo conduzido por De Cock et al. verificou-se que 5 voluntários acusaram positivo para norandrosterona, ultrapassando o limite superior de doping do IOC para homens (>2 µg/L), após a ingestão de um suplemento contaminado contendo hormonas.1,39

O nível de contaminação não tem que ser elevado para causar um teste de doping anormal. A contaminação com apenas 0.00005% de 19-norandrostendiona, uma pro-hormona esteroide, é o suficiente para dar um resultado positivo num controlo de doping.40

Estimulantes

Desde que a venda livre de efedrina foi proibida, um número significativo de suplementos passou a incluir na sua composição outros estimulantes que não são seguros, nem foram testados em seres humanos.41

Alguns desses estimulantes baseiam-se em compostos sintéticos, frequentemente relacionados com a família das anfetaminas, que foram criados por empresas farmacêuticas durante as décadas de 30 e 40. Mais tarde, esses compostos foram descontinuados devido a preocupações de segurança e potencial abuso.41

O ressurgimento desses compostos iniciou-se com a Dimetilamilamina (DMAA), também conhecida como “extrato de óleo de gerânio”, um potente vasopressor da classe das feniletilaminas. Devido ao surgimento de casos de ataques cardíacos, hemorragias cerebrais e outros eventos adversos, a DMAA foi banida em 2012.41

Mais tarde foram surgindo outros compostos relacionados e com estruturas e efeitos similares aos da DMMA e metanfetaminas, tais como o DMBA, BMPEA, NADEP e NN-DMPAA.41

Obviamente, a ingestão de suplementos que contêm este tipo de compostos tem potencial para conduzir a casos positivo para a ingestão de estimulantes proibidos pela WADA, durante os controlos anti-doping.4

Outros Compostos

Para além dos compostos já referidos, também foram detetados casos de suplementos alimentares contaminados com outras substâncias proibidas pela WADA, tais como o clembuterol, diuréticos, benzodiazepinas, antidepressivos, corticosteroides, diuréticos, laxantes, narcóticos e outros, que também podem levar o atleta a acusar positivo nos controlos.4,42

Conclusão

De uma forma geral, a literatura existente suporta a hipótese de que a ingestão de determinados alimentos e suplementos poderá produzir resultados positivos ilegais nos controlos anti-doping e esta deverá constituir uma preocupação séria para os atletas.1

Entretanto, considera-se que o uso descuidado e desinformado de suplementos é a principal causa de doping inadvertido.43

Em muitos casos, poderá não ser possível distinguir entre a amostra de um atleta que fez batota e a amostra de um atleta que foi exposto, de forma não intencional, a um composto proibido.1

Por esse motivo, os atletas, treinadores, nutricionistas e médicos deverão estar cientes das possibilidades de doping não intencional, porque, de acordo com as regras internacionais e a WADA, os atletas têm o dever de assegurar que nenhuma substância proibida entra no seu organismo e que são responsáveis por qualquer substância proibida ou seus metabolitos e marcadores que estejam presentes nas suas amostras.1 44

Desta forma, ao ponderar a hipótese de se introduzir um suplemento na dieta de um atleta, para além do seu nível de eficácia e dos potenciais riscos/benefícios, é também necessário considerar a possivilidade deste estar contaminado com substâncias proibidas.45

➤ Mostrar/Ocultar Referências!
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